sábado, 10 de março de 2007

TRÁFICO - por Leandro Malósi Dóro

Grande merda
Não suporto mais. Até há pouco eu sentia o amargo na garganta, agora nem isso. Amorteceu minha garganta, nariz e boca. Parece que nem tenho mais língua. Meus olhos estão esbugalhados e cansados. Meu corpo tremelica tanto. Não posso suportar. Fazem três dias ou mais que eu, o Besunto e o Tapume estamos aqui fazendo buchas de pó. Recebemos do Jeca um tijolo do tamanho de uma Bíblia ilustrada. Depois desses três dias, transformamos em bucha metade do Antigo e Novo Testamento.
Agora deve ser umas duas horas da tarde de algum dia da semana. Não sinto fome, não tenho relógio e não há nem sequer um rádio, por isso não sei de nada. As paredes deste apartamento são brancas demais e manchadas de pés, formando figuras que, às vezes, parecem monstros ou demônios, mas protegem contra a polícia, que está lá fora, provavelmente nos cercando. Devem fazer dias que ela está à nossa espreita. Tenho certeza: os policiais esperam o momento em que devolveremos a cocaína ao Jeca, em forma de buchas, para fazer o flagrante e nos prender. Às vezes penso que essa idéia é doida porém a cada minuto parece ser mais verdadeira.
Por enquanto é melhor cheirar. Já perdi a conta de quanto cheirei, nesses dias. O momento mais incrível do período em que estamos cheirando foi quando raspamos tanto pó que eu cheirava direto no montesinho, que se formava ao lado do tijolo. O Tapume me chamava por nome, sobrenome e apelido e nem assim eu o ouvi; continuava a fazer buchas de pó, sem parar. O Tapume me dizia “Ricardo, Ricardo Reis, Flanela, Flanelinha, você está me ouvindo?” e, cada vez que ele repetia, sua voz parecia mais distante. Meu espírito via meu corpo fechar as buchas, mas não podia intervir. Parecia que havia sido ligado o piloto automático de meu corpo e meu ser saltou pela porta, rumo a uma floresta de marofa.
Eu estou doido. Desde o primeiro dia, cheiramos antes de misturar o pó com o pó de giz, tanto que não sinto mais meu nariz. Esse pó que nós misturamos com o giz já veio misturado, mesmo assim dá para sentir um “toquezinho” bem leve de cocaína, no meio da lambança.
Olhe a cara do Tapume. Parece que não teve mãe. Cara troncho, fungando sem parar, enquanto escorre pó com ranho pelo nariz. Esse aí deve ter apanhado um monte do pai, quando era pequeno. Ele me falou, esses dias, que odeia o pai, porque o velho bebia e batia nele e na mãe. Foi por causa do pau que levava do velho que ficou com o nariz quebrado ao meio desse jeito, parecendo lutador de boxe, além dessas cicatrizes na cara, sem o dente da frente. Ele é repugnante. Esbranquiçado, bigodudo, com uns cabelos mais pretos que piche. Esse morre logo. Não sei que idade tem, mas já está com uns fios brancos e, com a quantidade que cheira e as confusões em que se mete, não irá durar muito. Alguém irá meter uma bala na cara dele ou uma facada bem dada na prisão.
O Besunto é um merda. Sempre quer enganar os outros. Tem cara de fuinha, magro, sem queixo. Parece não haver nada debaixo daquela jaqueta de lã, de posto de combustível. Quem saiba haja apenas pedaços de ossos cobertos por carne. Esse cara já me sacaneou. Ele vende pó misturado ou falso para os amigos. Essa é a pior sacanagem.
Enlouqueci quando ele me vendeu farinha jurando que era pó e eu acreditei. Desgraçado! Deve estar-se cagando de medo que eu e o Tapume acabemos com ele a soco. Bem que eu queria enfiar a vassoura de cozinha no rabo dele. Mas deixarei tudo como está, senão essa merda acaba mal e com a polícia querendo saber o que houve quando descobrir o corpo do Besunto apodrecendo em algum lugar da cidade.
Além disso, eu não guardo rancor de nada - pelo menos foi o que disse a astróloga, sobre meu signo. Nunca acreditei em astrologia (achava horrível quando ouvia algum idiota dizer a palavra astrologia quando queria falar de astronomia). Mas a astróloga que eu conheci me arrepiou. Disse-me que estou numa época de mudanças porque lua tal fechou com planeta tal. Bela bosta. Entretanto desta vez eu acreditei.
Vou mudar de vida. Sinto isso faz dias. Quero sair do tráfico. Enquanto eu continuar a cheirar e a traficar, minha vida só irá piorar. Rolo de apartamento em apartamento desde que minha mãe me expulsou de casa, quando soube que eu usava cocaína. Faz quatro meses.
Quase nunca consigo o que comer. Dependo da caridade dos outros ou de algum trabalho para um traficante qualquer. Em certas horas eu consigo pensar em algumas coisas para melhorar minha vida, porém na maior parte do tempo parece que toda essa vida não passa de nada. Queria morrer, mas não assim; não desse jeito.
Talvez seja melhor eu morrer sendo perseguido por traficantes. Penso nisso há meses. Vou denunciar todos estes traficantes para a polícia e depois me entrego. Assim paro de cheirar na marra e os traficantes se ferram. É isso. Vou me mandar desse apartamento e dessa vida agora, neste instante, enquanto tenho coragem para isso. Vou fingir sair para comprar cigarros e vou à polícia. Eles nem vão desconfiar.
- Guris, vou no bar comprar cigarros.
- Vai mesmo que os meus já estão acabando – diz o Tapume, distraído com as buchas ou algum efeito que o pó faz nele.
- Ricardo, você podia nos trazer uma cachaça – geme o Besunto.
- Você tem dinheiro? – esbravejo.
- Não.
- Então vai à merda.
Bato a porta e me mando. Se os federais estiverem por perto estou ferrado. Quem saiba, assim que eu sair pela porta do edifício, eles, os federais, me baleiem, como vi num filme de faroeste. Os dois bandidos ficam numa casa abandonada, cercados pelo exército. Há tiroteio. Acaba a munição da dupla. Os dois decidem se entregar e são fuzilados. Parece a morte do Chicão e do Berto, lá no morro. Foi igual, só que com chinelo de dedo, barraco, metralhadora e polícia cercando os caras.
Abro a porta do edifício e ninguém anda pela rua. Meu coração poderia bater menos. Estou tremendo. Deve ser o frio. O inverno aqui no Sul é horrível. O que há de bom no Rio Grande do Sul? Aqui em Passo Fundo tem umas pistas de pouso legais para trazer marofa de monte. Todavia, no mais, é ruim. Quando se sai à rua vê-se as mesmas caras todos os dias.
Cidade pequena é assim. Mesmo aqui, com mais de 180 mil habitantes, todos se conhecem. Pior ainda é ficar com o nariz gelado no inverno. Dá vontade de dormir com roupa, para não sentir frio ao botar o pijama e ir para cama. Rimou: cama e pijama. Dá para fazer um blues bem marcado:
Não vou botar pijama, para ir para cama
Não vou botar pijama, senão eu me dano
Senão eu congelo, me estrepo, me fodo
Porque aqui é frio, muito frio, frio.
Eu poderia ser o maior “bluzeiro” do mundo. Já toquei gaita de boca, mas não tinha dinheiro para comprar os apetrechos: microfone, cabo, caixa de som. Senão a turma do João até aceitaria que eu fizesse parte da banda dele. Já fiz umas participações em uns sons que essa banda fez por aí. Tocávamos Mexa-se Boy. Grande som. Além disso fazíamos Blues Etílicos e outras bandas legais. O Gross tinha um monte desses sons, em vinil. Tocar Nei Lisboa também era massa:

Faxineira, fascinante,
onde guardaste o papel
que eu deixei lá na estante,
anteontem
é importante.

Era um recado
que o mutuca me deixou
de uma garota de Brasília
filha única de governadooor.

A letra deve ser diferente, porém eu canto assim. Se eu tivesse o disco, aprenderia. Mas só ouço essa música na casa dos camaradas, dos traficantes ou em bar. Assim não dá. Não posso curtir nada tendo que até mesmo ouvir música na casa dos outros. Minha vida está se autodestruindo. Sempre fico na cola dos outros, cheirando o pó dos outros, ouvindo o som dos outros e até comendo a comida dos camaradas, desde que minha mãe me expulsou de casa.
Sou um merda.
Se, quando nasci, meus pais tivessem dinheiro iria ser diferente. Eu faria um curso superior, virava doutor de qualquer coisa e ganhava uma boa grana. Mas minha família não tinha dinheiro para nada. Culpa de meu pai, que era pé rapado e gastava tudo em jogatina e tinha medo de qualquer coisa que se movesse. Foi uma lição para ele ter morrido de cirrose, depois que minha mãe me expulsou de casa. Ele pressionou minha mãe a me expulsar, porque era muito covarde para me mandar embora sozinho. Cagão. A verdade é que tenho pena de minha mãe morando sozinha, lá naqueles cafundós. Se ela me quisesse, até voltava para casa, mesmo que seja ruim nossa convivência.
Sabe como é? Ela já está velha, muito rabugenta. Enquanto eu morava em casa, ela reclamava por qualquer coisa. Nem sequer seleciona o que deseja reclamar. Quando sentia-se chateada por algo, gritava comigo para se acalmar. Descarregava tudo em mim. É, na verdade, foi melhor ter saído de casa. Eu não iria suportar isso de novo, de jeito nenhum. Basta que ela me respeite. Isso eu preciso conquistar.
Tenho que jurar isso: “eu, Ricardo Reis, prometo que vou recuperar o respeito de meus familiares, em especial de minha mãe”.
Tudo bem. Depois que eu dedurar os caras que vendem marofa, minha mãe se orgulha de mim. Ganho proteção policial. Arranjo um emprego e começo a receber salário; se bobear, alguém escreve um livro sobre mim. Minha vida é filmada para o cinema. Massa. Agora eu preciso saber onde fica a polícia mais próxima. Se algum federal estiver me perseguindo, vai ficar de boca aberta, vendo-me ir à polícia. O policial que estiver me perseguindo pensará: “o que esse traficante está fazendo? Deve ser doido ou tem ‘ponte’ na polícia”.
O pior a acontecer é se algum dos camaradas do Jeca estiver me perseguindo. Aí é ruim. Já pensou o Tapume, com aquelas munhecas, pegando-me pelo colarinho? Credo. Vou direto para o cemitério. Melhor, faço duas viagens: primeiro para o necrotério e depois para o cemitério da Vera Cruz, aqui pertinho.


Vamos nessa
“Com licença, poderia me informar onde fica a polícia mais próxima?”. Essa foi boa. A velhinha nem desconfiou que sou traficante, quando perguntei. Eu disse: “com licença...”. Sou educado, mesmo. Poderia ser embaixador. Já imaginou? Eu em festas, falando sobre o meu país. “No Brasil nós temos cocaína da boa. Vem da Colômbia”. Legal. Virava magnata, cheirava cocaína de primeira, usava êcstase. Faria festas. Ia ser o grande...
Depois que eu dedurar os caras, quem saiba eu arranje um jeito de estudar e virar embaixador. Já imaginou? Tenho apenas 22 anos e posso, muito bem, fazer uma faculdade. Depois de me formar e passar no concurso para embaixador (se isso existir), algum grandalhão me dirá: “Precisamos de você para conduzir a embaixada daqui ou de acolá”. Antes tenho que parar de usar drogas. A polícia vai me ajudar. Eu já vi isso na televisão. A polícia irá proteger-me em algum país estrangeiro e possibilitar que eu trabalhe e estude.
O Tapume diz que essa estória de proteção policial é fria; que a polícia não faz nada por quem quer dedurar traficante e tal... Mas eu duvido. Deve ter dito isso para ninguém querer sair do bando; deve ser essa sua intenção.
Vi uma reportagem em que um ex-traficante do Rio de Janeiro foi transferido pela polícia para outro país. Ele voltou escoltado para o Brasil apenas para testemunhar contra os traficantes - contra os mesmos caras que estreparam com sua vida. É isso que eu quero: sair dessa vida de drogas e virar estrela, dando entrevista na televisão, todo encazupado para ninguém me reconhecer e querer me matar, depois de meu sucesso. Não quero mais morrer nas mãos de traficantes.
Muito bem, vou à polícia. A velhinha disse que era para eu seguir pela direita, caminhar pela Avenida Presidente Vargas. Aí eu veria um muro e um portão enorme ao lado da estátua de um cavalo e um cavaleiro com uma lança.
Deixe-me ver. Bah. É a brigada militar. Só vi os brigadianos pegando viciado pequeno lá no Parque da Gare. Devem pegar traficantes também. Vou falar com aquele guarda na guarita, ao lado do portão de entrada do quartel. Depois de hoje eu saio dessa vida podre.
- O que deseja, rapaz.
Que susto eu levei. Quase pensei que fosse o Besunto. É a cara dele, só que com farda e numa guarita policial. Provavelmente cuida da entrada do quartel. Não sei porque se chama um policial militar de pé-de-porco, se esses policiais vestem cinza. Deviam ser chamados de corvos ou sei lá qual nome. Não sou inventor para ficar criando gíria.
- O que você quer aqui, rapaz.
- Vim procurar vocês para dedurar uns traficantes. Sei de tudo.
- Qual é o seu nome?
- Ricardo Reis, mais conhecido como Flanelinha.
- Só um instante.
Entrou para a guarita. Está falando no telefone. Deve estar desconcertado por ter encontrado um peixe grande que nem eu. Eles vão me levar na mão, igual a pão-de-ló. Desligou o telefone. Com certeza falou com o comandante, que com certeza irá me receber. Pudera, vou falar tudo sobre o tráfico, aqui na cidade.
- O senhor pode seguir em frente, por esta estrada – apontado para um asfalto, ladeado por grama, folhagens e flores, que ruma em direção ao prédio do quartel. - O sargento Souza vai falar com o senhor.
- Valeu – agradeço e me vou. Nossa. Como é grande esse quartel. Grande e antigo para caramba. Deixa ver: um, dois, três andares e, no mínimo, umas 40 janelas apenas em um andar. Deve ter quatro lados igual aos forte-apaches de brinquedo e aos quartéis que a gente vê em imagem aérea na televisão.
Olha lá, está chegando um cara. Será que todos esses caras são barrigudos? Se forem, pode-se chamar policiais militares de pé-de-porco. Esse cara deve ser rengo ou sua barriga faz com que seu corpo penda de um lado a outro, junto com a papada. Nunca mais reclamo que eu sou magro demais. Pior seria eu ser igual a esse gorducho.
- Tu és Ricardo Reis, o Flanelinha?
- Sou, sim senhor, sargento Souza – disse, confirmando o nome dele no uniforme.
- O que deseja?
- Vim revelar a vocês os responsáveis pela distribuição de cocaína aqui na cidade.
- Sei. Poderia me acompanhar? – já andando para o lado do quartel. Acho que vai me levar para dentro do quartel e chamar os comandantes, para também ouvirem o que vou contar-lhes sobre o tráfico na cidade. Preciso falar-lhe mais.
- Sabe, eu quero deixar de trabalhar com drogas. Por isso eu procurei vocês para contar tudo o que eu sei sobre a rota de tráfico que passa por Passo Fundo e região.
- Sei. Há quanto tempo tu lidas com isso?
- Há uns oito anos. Comecei aos 14. Agora estou com 22. O que me incentivou a consumir foram uns caras que se escondiam em uma casa abandonada ao lado do barraco onde eu morava. Eles cambavam uns troços na vizinhança e iam para lá fumar. Sabe como é? Eu não tinha nada para fazer em casa, aí os procurava e eles me davam uns baseados.
- Se, na época, você participasse dos programas de assistência social para adolescentes, que mantemos aqui no quartel, com certeza não se envolveria com isso. Infelizmente há poucos programas que dão ocupação pela manhã e tarde a adolescentes de baixa renda. Trouxe o filho de um vizinho meu para cá e...
O cara não me levou para dentro do quartel. Desviou para o lado. Será que tem outra porta, do outro lado? Bah, o quartel não é igual ao forte-apache. É grande só na frente. Tem uma pista de corridas atrás. Acho que a gente vai entrar pelos fundos. Olha, lá, carros antigos, atrás do campo de corrida.
- A quem pertence esses carros?
- Pertencem à brigada, mas estão fora de uso. São muito velhos.
- Se eu pegasse alguns desses, juntava as peças e fazia um bom.
- Nós vamos leiloá-los em alguns dias.
- Legal – dissimulava. Comecei a me preocupar. Ele está me levando para um portão de saída, do lado do campo de corrida. Por quê? Será que tem um prédio só para isso do outro lado da rua. Sei não. Tem muito mato nessa cerca.
- Bom, meu jovem. Reconheço a importância destas denúncias, quanto ao tráfico. Mas infelizmente a brigada militar pode cuidar apenas do policiamento ostensivo. Proteger moradias, prender pequenos usuários de drogas, policiar escolas e outras coisas. A denúncia que você quer fazer pode ser realizada apenas à polícia civil e nós não desejamos nos meter na função deles, pois já temos muitos atritos com a civil. Você sabe onde fica a delegacia?
- Não – puta que o pariu, o cara não está a fim de me escutar. Tudo bem.
- Você conhece o hospital municipal?
- Sim.
- A delegacia é atrás do hospital.
- Obrigado
O cara não quis que eu falasse. Mas eu vou nessa outra delegacia. Nunca entendi direito a diferença entre brigada militar e polícia civil. Sei que a civil é mais dura com os traficantes. O policial civil trabalha sem uniforme e mata quando quiser. Mas não sabia que a civil podia prender traficantes. Deve ser por isso que até hoje apenas vi a brigada militar pegar usuário ao sair da casa dos traficantes, com marofa, e não traficante.
Puta, esqueci de pedir emprestada uma passagem de ônibus. Estou com dinheiro só para umas cachaças. Os bolsos dessa calça estão furados. Preciso comprar umas roupas. Usar botina velha, camiseta de gola esgaçada e calça jeans furada é uma porcaria. Não dá nada, depois que eu dedurar os caras eu posso me mandar daqui, conseguir um dinheiro com a polícia, me curar do vício de pó e arranjar um emprego. É isso.
Ai, merda. Começou o repé. Tenho que chegar logo à delegacia antes de começar a tremer por falta de cocaína. Ainda bem que eu trouxe uns papelotes com umas carreiras. É só pegar o canudinho de papel, encontrar um lugar legal e cheirar. Aqui tem um beco bom. Vou nele. Droga. Tem gente. Crianças brincando e acho que é a mãe delas. Vou procurar outro lugar. Essa mulher me olhou de um jeito, como se eu fosse um marginal. Acertou.
- Ah, ah, ah – adoro rir alto na rua, parece vilão de filme. Daí o bruxo mau pegou a mocinha e levou para a caverna. O mocinho chega para salvá-la, é preso numa gaiola e o bruxo mau diz: “Vocês são meus, ah, ah, ah”. Legal. Sempre me perguntei quem nascia para vilão na vida. Até agora, não sei. Será que fui eu quem nasci para vilão? Contra quem?

Falcatrua
Consegui. Esse beco é bom. Perfeito para cheirar umas carreiras de cocaína. Parece a cabina telefônica que o super-homem entra para se trocar. Aqui eu me transformo em – tcham, tcham, tcham – “supercheirandão”, o “superdoidão”. O ruim é abrir esse pacotinho de coca sem fazer barulho. Incrível, esse pó pequenino é tudo que eu preciso. Melhor cheirar sem fazer carreira, direto no plástico. Botar o canudinho no nariz e...
-Ssssssssssssssssssssss...hhrrrrrrhhhh.hrrrrrrrr. Ah.sssssssss.hhrrrrrrhrrrrrrr.hrhrhhr.
Desce cocaína, desce. Desce pela garganta. Fica amarga, bem amarga. Isso, assim. Bom. Muito bom. Zzzzzzuuuuuuuuuuuiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiinnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn. Minha cabeça vai começar a zunir daqui a pouco. Vai começar. Ainda não. Mas daqui a pouco começa. Passou a tremedeira. Está passando. Legal. Ainda tremo, mas vai passar. Vai passar. Como dói ficar sem pó. Dói. Dói. Dói. Parece que tem uma garra tirando minhas tripas pelo cérebro e me deixando vazio. Será que isso é o diabo? Deve ser.
Hhhaaaaaaaaaaaaaaaaaaiiiiiiiiiiiiiiiiiihhhhhhhhhhhhhhrrrrrr. Se alguém ouvir eu gemendo baixinho assim vai achar que eu sou doido. Uuuuuuuuuuuuuu. Merda. Eu tenho que parar de pensar nessa palavra: merda. Melhor pensar em alguma variante, tipo bosta ou sei lá o que. Ou parar de falar e pensar palavrões. Agora que eu vou dedurar traficante, e ficar legal de vida, não posso mais pensar palavrão.
Vou ser um cara legal, bem-educado e não falar mais palavrão.
Vou vestir roupas novas e.... merda. Se eu ficar sem cocaína estou perdido. Os policiais não vão dar pó para mim cheirar. Estou doido. Não posso dedurar meus camaradas traficantes. Eles têm o pó que eu preciso, se eu ficar sem, morro. Há pouco fiquei sem cheirar e quase endoideci. Se eu for para a delegacia eles me largam numa cela suja. Eles me deixam sem pó e sofro síndrome de abstinência. Não dá. Depois que os traficantes souberem que eu os dedurei sou perseguido e morto. Acaba-se minha vida.
Preciso voltar ao apartamento e dizer que cruzei algum camarada e fui fumar um baseado e, por isso, atrasei-me. Eles vão acreditar. O Mauro ficou de levar uns baseados ao “apê” e não levou, por isso tenho justificativa para fumar na rua. O Tapume e o Besunto no máximo vão reclamar que eu não trouxe nenhuma ponta para eles fumarem. Vou fazer isso e tudo volta ao normal, sem brigas e nem “dedurações”.
Não. Eu já decidi que me entregarei à polícia para dedurar todos os traficantes que conheço e vou, mesmo. Abrirei o jogo à polícia e pararei de fazer falcatruas. Daqui a pouco a coca faz efeito e me sinto melhor. Depois que passar o efeito, me dá repé e eu durmo, nem que seja em uma cela na delegacia ou no apartamento de algum conhecido.
Melhor, pedirei à polícia para que, depois que eu depor, me leve a algum hospital. Fazem dias que cheiro sem parar. Quando eu parar vai me dar uma crise braba, igual a última vez que fiz isso. Antes, tomo um litro de cachaça para agüentar o repé. Após o depoimento, peço a cachaça à polícia. Os policiais vão me entender...vão me entender.
Preciso de cachaça. Preciso de cachaça. Também seria bom um baseado, daqueles bem grandes. Isso...eu preciso disso mesmo: cachaça e baseado. Muito, desses dois, e eu consigo dormir. Essa é a única maneira de curar repé de cocaína. Se eu não fizer isso ficarei deprimido e com dores de cabeça e musculares, que continuarão por dias, dependendo da quantidade que eu cheirei – e não foi pouco.
O caminho para a delegacia é mais curto por essa rua estreita. Também posso passar pelo bar do Luiz para tomar uma dose de cana e fumar um baseado, filado de algum conhecido que estiver próximo. Preciso disso, antes que eu venha explodir; antes que eu mesmo fique insuportável. É terrível a culpa que me dá ao cheirar cocaína. Sinto-me igual me sentia quando criança e meu pai se aproximava de mim com uma cinta, e com hálito de cachaça, pronto para me bater por algum motivo o qual às vezes nem ele sabia...
Atravessar a rua é ruim. Nossa. Como tem pessoas nessa Avenida Presidente Vargas. Deve ter muito mais no mundo. Carros. Como há carros aqui. Olha um, está vindo para cima de mim. Vou morrer atropelado. Não consigo fazer nada, pois parece-me que eu e as coisas à minha volta estão em câmara lenta. Uno forças para me assustar e reagir...
- Ô, desgraçado, não sabe dirigir? – berro. Porcaria, esses caras não sabem por onde andam, se eu não tivesse corrido para a calçada, teria morrido aqui mesmo. Meu coração está saindo pela boca. Olha só. Basta colocar a mão no peito para sentir. Estou sem fazer exercícios físicos há tempos. Tenho que parar de pensar, para descansar...

Espírito
“O Gato Fritz”, esse filme é bom. Assisti no apartamento do Agnaldo. Aquele gato doido, o Fritz, cheirava, fumava, fodia as gatinhas e andava pelo mundo, sem fazer nada; fingindo ser poeta e escritor. Legal. Queria andar pelo mundo, escrevendo e curtindo. Conhecer um monte de marofeiros, trepar com gatinhas, sempre doido, doido, doido.
Não. Tenho que parar de usar drogas e, antes de escrever, preciso ler livros. Vou a pé, agora, à polícia denunciar os traficantes. Antes vou passar no bar do Luiz. O bar está perto. É na próxima esquina. Já estou chegando nele e tenho certeza de que o bar está lotado.
Batata, cheio para caramba. Nem deve ser quatro horas da tarde de algum dia da semana e os caras estão aí, num bar “chaveiro” do lado da associação dos Subtenentes e Sargentos. Esses vagabundos são de sorte. Os porcos estão com a sede ao lado e não os prenderam.
Olha lá, o Fininho - com aquela cara chupada, calça jeans, camiseta e botina mais velha que as minhas. Está tiritando de frio.
- Aí, Fininho. Como é que está, magrão?
- Legal, velho. Tu estás sumido. Nunca mais veio tomar umas aqui – diz animado.
- Eu estava trabalhando para o Jeca.
- Fazendo umas buchas, hein. Estou vendo tua laje de trincado.
Minha cara deve estar horrível. Nem pensei nela. Devo estar com olheiras imensas. Quem saiba o Fininho me auxilie a parecer melhor.
- Tu pareces um zumbi. Estás com olheiras imensas, olhos vermelhos e magro para caramba – fala Fininho, procurando algo nos bolsos.
- Cheirei um monte, fazendo as buchas para o Jeca.
- Eu já sabia disso. Eu parei de cheirar. Nunca mais ponho o nariz no pó – diz Fininho, enquanto retira isqueiro, papel de seda e anarguilés dos bolsos. - Não quero saber mais dessa porcaria, que me fazia gastar o dinheiro que não tinha. Agora apenas bebo cachaça e fumo baseado. Não preciso roubar, pois não cheiro. Se quiser, te empresto um colírio – diz, retirando, triunfante, um tubo de colírio de um dos lotados bolsos da, para ele, enorme calça jeans.
- Legal. É isso mesmo que eu quero.
- Pegue-o e vais ao banheiro, pinga-o nos olhos e dá um jeito nessa lata – afirma, enquanto observa-me. - Está na hora de tu trocares esta camiseta, calça e botina velhas por algo mais novo, cara. Vai trabalhar vagabundo. E vê se arranja um agasalho, hoje está muito frio para vestir-se apenas com isso aí de roupa.
- Você precisa fazer isso tudo mais do que eu, Fininho – respondo. Ele se ri. Esse Fininho é legal. É um dos poucos, por aqui, que dá para confiar. O resto é uma calhorda insuportável que deseja apunhalar a todos pelas costas, enquanto mete o pau no rabo deles. Falando em apunhalar, olha lá o Cascão. Parece um porco, com esta barriga e a camiseta que não tapa nem sequer o umbigo. Tomou banho. Está com o pouco que restou de seus fios de cabelo e do bigode penteados. Deve estar atrás de alguma vagabunda.
A Zenaide também está aqui. Essa mulher é linda com esses olhos e cabelos negros, apesar de estar chapada toda vez que a vejo e estar sempre com os cabelos desgrenhados e essas calças jeans, camisa listrada velha e botina deformada pelos dedos.
Uau, se falasse às pessoas com esse tipo de diálogo que tenho comigo mesmo, me tornaria um escritor, radialista ou qualquer outra coisa que dê dinheiro. Na verdade, há dois anos estou falando com o espírito do Balão. É isso. Quem ouve os meus pensamentos é o espírito do Balão, meu velho camarada.
Como está Balão? Tudo bem no céu? Foi ruim, depois que você morreu. Você era legal, mas se metia demais com estas vagabundas da noite, cara. Trepou demais. Não devia ter comido qualquer mulher que pintava pela frente, meu! Nem deveria ter-se picado com cocaína daquele jeito, depois que descobriu que tinha Aids.
Se você estiver do meu lado agora, aqui no banheiro, encosta a mão no meu ombro. Eu gosto de você, seu desgraçado. Juro, e lhe digo: não vou morrer tão cedo. Então é melhor que se acostume a conversar comigo dessa maneira.
Você era legal. Era o único que se vestia bem, com aquela jaqueta de couro, camisa xadrez, calça preta e bota. Você sempre estava bonito para comer as meninas e guardar a coca e a seringa no bolso, para se picar sozinho, no banheiro, com tanta elegância que ninguém notava que você voltava doido à mesa.
Sua personalidade era maravilhosa. Você me entendia, consolava-me nos piores anos, quando eu queria me suicidar. Lembra-se quando conversamos sobre drogas e concluímos que usávamos cocaína e tomávamos cachaça para morrer mais cedo. Você morreu. Entrementes tenho certeza que você me acompanha até hoje, Balão.
Agora eu vou pingar colírio nos meus olhos, Balão, no banheiro do bar do Luiz. Esse bar fede. O vaso é a pior parte. Quando eu queria vomitar, vinha para cá. Lembra quando eu fazia cara de misterioso, aqui no bar, saía da mesa e ia ao banheiro? Pois é, eu ia vomitar, não era para cheirar ou qualquer outra coisa. Agora posso te contar. Antes eu não dizia nada a ninguém porque temia que alguém risse de mim. Besteira...
Balão, me dá cobertura que estou saindo do banheiro para tomar uma cachaça. Olha lá o Luiz, atendendo ao balcão, com aquela camiseta manchada de gordura e o barrigão imenso, parecendo a de uma porca. Jogo as moedas que tenho no bolso e digo:
- Luiz, me consegue um martelinho. Estou com a garganta seca.
Ele não fala nada. Serve a cachaça e não diz nada. Será que estou devendo alguma coisa para ele? Não me lembro disso.
- O que houve, Luizão, está mal?
- Não houve nada. Só estou um pouco “cabreiro”. Disseram-me que os “ome” viriam ao bar dar batida, para pegar usuário de drogas. Esses dias já rolou isso e quase me estrepei. A polícia ameaçou fechar meu bar se encontrasse alguma droga na casa. Agora o Jorge se escondeu na cozinha com umas dez gramas de pó. Se o pegam lá, estou perdido, perco o bar e não tenho mais onde trabalhar, cara.
- Não esquenta, Luiz. Você sabe que a turma do bar é meio barra-pesada; mas o seu bar não fecha – tento tranqüilizá-lo, mesmo sabendo que ele está em situação difícil.
- O maior problema é que eu já estive envolvido com essas porcarias. Agora que eu parei de usar drogas, vejo em qual loucura que me meti.
- Eu me lembro quando você abriu esse bar, Luiz. Eu e o Balão fomos os primeiros a vir para cá, conhecer o bar e ajudar a fazer clientela.
- O Balão, eu lembro dele. Pena, ele não sobreviveu ao bichinho da Aids. Eu estou vivo ainda. No hospital, fui colega de quarto do Balão semanas antes dele ir-se. Lembra?
- Lembro, cara.
“Cablam”.
- Ei, que barulho foi esse? – esbraveja Luiz, vendo a porta ser aberta bruscamente pelo Fininho, lívido e ofegante.
- O Digão disse que os “ome” vão vir para cá, daqui a pouco.
- Merda. Se mandem. Vão embora. Não quero bagunça aqui. Todos que estiverem com porcaria, saltem fora do bar e não voltem até amanhã... – berra Luiz, enquanto agita os braços como se quisesse varrer todos do bar.
O Luiz está muito nervoso. Melhor eu ir embora, enquanto ele não me enxota daqui. Vamos lá, Balão, fantasma camarada. Vamos embora que eu tenho que ir à delegacia, antes do final da tarde. Vamos andando. Agora, pelo menos, tomei um martelinho. Estou melhor. Falta pouco para chegarmos à delegacia. Vamos lá.
Ei, espere um pouco, Balão. E se eu me entregasse à polícia no bar do Luiz. Ninguém suspeitaria que foi de propósito e eu poderia denunciar os traficantes sem remorso. Não. O Luiz iria se estrepar se a polícia me pegasse com pó no bar dele. Seria pior. Vou ser fiel ao amigo e vou para a polícia a pé. Não estrepo os meus amigos.

Cana
Olha lá embaixo, Balão. Agora a delegacia é aqui, ao lado do hospital municipal. Dá para ver o prédio da delegacia daqui do morro. Agora podemos saber à distância quando eles sairão para dar batidas. É possível até mesmo brincar de franco-atirador. Pode ficar-se aqui em cima, com umas espingardas de alta precisão, atirando nos investigadores como se eles fossem patos de tiro ao alvo. Legal, né? Pena que ninguém fez isso, ainda. Se fizer, está morto. Mesmo que o atirador seja apenas preso, os policiais matam-no na cadeia. Os policiais se tornam cúmplices e dizem que o marginal se matou e pronto: explicação dada.
Você me acompanha até a delegacia, né Balão? Você nunca entrou numa delegacia em vida, cara. Sempre teve comichão, quando as via, pois tinha medo de ser preso. Agora que você morreu e nem precisa preocupar-se com isso. Pode até assombrar uns policiais e se comunicar com os fantasmas dos que morreram ali, apagados pela polícia.
Entramos agora na delegacia e depois você me conta sobre a vida dos fantasmas. Está no momento de você falar; afinal, apenas eu falei até agora, aliás, pensei. Porque para falar com fantasma não precisa falar, né cara? Basta pensar e pronto.
Vamos lá. Não me abandona agora. Eu preciso contar as falcatruas do Jeca e dos outros traficantes grandes, livrar-me das drogas e mudar minha vida. Depois dessa conversa com os policiais você nunca mais me verá usando drogas. Saio da cidade.
Não há ninguém para se preocupar comigo, só eu. Meus pais me largaram depois que souberam que eu uso drogas; após me expulsar de casa, meu pai morreu. Sobrou minha mãe, mas ela não vai me querer morando com ela. Há meses circulo pelas ruas. Vivo de apartamento em apartamento; me dá essa força para eu sair dessa vida, Balão.
Olhe! Olhe, a delegacia está ali embaixo, naquele prédio velho e de parede branca, descascando de tanto neguinho que passou por ali e foi preso. Vem comigo. Entra comigo nessa delegacia. Preciso de alguém para me ajudar a seguir em frente. Depois dessa confissão, aos policiais, minha vida mudará e você estará ao meu lado, em um mundo que nunca viveu, sem drogas, sem ninguém para aporrinhar de madrugada para pedir porcaria ou passar a perna ou coisas assim. Ajude-me. Ajude-me.

Porcos
Descer este morro, atrás da delegacia, é legal, né, Balão, meu fantasma camarada. Essa relva boa ajuda a deslizar, na descida. Dá para sentir as gotas de orvalho umedecendo a barra da calça e a botina. Assim, essa calçado velho parece até mesmo novo e escuro, quando fica úmido. Quando perco o equilíbrio, na metade da descida, bato a mão no chão e a ponho em frente ao nariz, para sentir o cheiro de relva, nesse final de tarde de outono. Sinto-me uma criança; estou feliz. Verdade, Balão. Estou feliz, agora.
O pôr-do-sol aproxima-se. Lembra-se quando fumávamos uns baseados na praça da Gare, vendo embaixo um campo verde, a cidade e, longe, o bosque com árvores lindas? Lembra-se. Todos os finais de tarde fazíamos a mesma coisa, para depois nos bandearmos à casa de algum amigo, beber cachaça, fumar mais uns baseados e ouvir músicas antes de irmos a nossas casas de madrugada. Naquela época, já não éramos inocentes. Perdemos a inocência há tempos ou será que nunca a tivemos? Eu não sei.
Para dizer a verdade, nunca fui inocente. Sempre sofri. Verdade! Quando criança, fui expulso da escola, nem sei por que motivo. Sério, Balão. Eu nunca soube o motivo de minha expulsão da escola. Lembro-me de alguns colegas que faziam coisas terríveis. Sabe o Luizinho, aquele que é traficante? Ele era meu colega de primeiro grau e, certa vez, tentou bater nos colegas com mangueira de borracha. Foi expulso na hora.
Você também foi expulso da escola, Balão. Você me contou. Quando o conheci, imaginei que fosse um daqueles doidos varridos, que não prestam para nada, mas que queria manter a elegância, e conseguia. Acertei. Conheci-o no bar do Nestor, num dos espetáculos da Vald, a banda do Beto, Maurício, Cristiano e Rafael. Grandes músicos. Onde andam? Mas isso agora não importa. Siga-me que estou indo aos “ome”.
“Ai”. Descer esse morro é bom, mas o asfalto é duro, quando se resvala na calçada. O asfalto me machucou a mão. Vamos lá. A polícia não vai crer no que eu contarei. Os policiais me darão proteção para que eu confesse quem trafica e pararei de usar drogas. Os caras que eu dedurar vão ficar fulos da vida, mas eu preciso dizer isso à polícia. Vai ser melhor para os traficantes. Melhor parar de usar drogas agora e ser preso do que ficar nessa vida, fugindo de polícia e sem saber qual será o próprio futuro, amanhã.
Estou nervoso, Balão. Preocupo-me até com o barulho que estas britas fazem ao pisar nelas, no pátio da delegacia. Elas fazem “scratch, scratch”. Não gosto desse barulho. Começa a me dar vontade de ir ao banheiro. Preciso mijar antes de depor. Meu coração parece que vai saltar do peito e parar no outro lado da cidade. Ajude-me, Balão, entrarei na delegacia, agora, preciso de seu apoio para não fugir daqui.
Como é lotada essa porcaria. Gente chorando, preocupada. Aquela mulher, sentada no canto...Sua cara deve estar parecida a minha, de tão desesperada que está. Será que mais alguém vem dedurar traficantes, como eu? Não sei. Acho que eu não deveria dedurar ninguém, mas já que estou aqui, vamos lá. Vou falar com esta mulher, aí no balcão.
- Com licença,... Com licença, minha senhora.
- Só um minuto, que estou atendendo outras pessoas – responde-me, enquanto parece atender três a quatro pessoas ao mesmo tempo.
- Certo – essa eu não esperava. Tem fila até para denunciar. Assim não dá certo. De repente aqueles outros dois, parados no canto possam me atender, agora.
- Com licença,... Com licença, senhores. Podem me atender?
- Espere a Ezilene lhe atender.
- Quem é Ezilene?
- Aquela ali, que está no balcão – aponta para a mesma mulher que eu havia conversado há pouco. Porcaria. Isso vai demorar. Essa mulher já está doida. Olha só, Balão. Os cabelos delas são encaracolados e imensos, parecendo com aquela cobradora de ônibus que nos deixava passar sem pagar. Lembra-se? Só que essa mulher é mais magra do que a cobradora, não tem cara de ovo e é mais velha. Não se cuida. Deve ser porque trabalha nessa delegacia com homens para todos os lados, pedindo para que faça milhares de coisas. Se parecer bonita, vai incomodar-se o dia todo com cantadas.
Vamos sentar no banco, Balão, para esperar as coisas se acalmarem. Reparou como essa porcaria de delegacia está lotada? Será que todos estão pendentes com a justiça? Queria ouvi-los. Mas é melhor eu não falar com ninguém, senão daqui a pouco algum amigo de traficante me reconhece e quererá saber o que faço aqui, nessa delegacia.
Ficaremos quietos, Balão, conversando entre nós, por pensamento, sem abrir o bico.

Espera
Balão, meu fantasma camarada, estou começando a estourar. Aqui na delegacia é muito quente ou o efeito do pó está passando. Preciso me reanimar. Tomarei um pouco d’água, no banheiro. Venha comigo. Ao menos não há fila para o banheiro.
Puxa, que porcaria. Esse banheiro fede. Alguém vomitou nele. O vaso está um nojo. Parece que o cara comeu arroz com galinha, antes de pôr tudo para fora. Parece que esse vômito está aí há dias. Será que ninguém limpa essa coisa toda?
Melhor eu lavar o rosto, rápido, e voltar para o banco de espera. Sinto-me mal. Minhas olheiras pioraram. Estou muito magro, também. Desde que saí da casa da minha mãe, emagreci um monte. Mas você sabe, Balão, eu não podia mais viver com ela. Ela estava insuportável. Todas as vezes que eu chegava em casa de madrugada ou ficava uns dois dias fora, ela dizia que havia passado o tempo todo acordada, esperando-me, que eu era um irresponsável e outras histórias. Você sabe, viver sozinho com a mãe é ruim.
A minha velha vai se impressionar quando souber que eu dedurei os malandros. Vou arranjar um emprego longe daqui e mandarei dinheiro a ela. Assim ela pára de azucrinar-me, falando que não tenho trabalho e ganho dinheiro com falcatrua. Isso vai ser bom, né, Balão? Ganharei mais autoconfiança, isso é importante.
Deixe-me secar o rosto com papel higiênico e voltaremos àquele banco duro, até que essa porcaria de delegacia fique um pouco vazia e eu possa dedurar os traficantes. Vamos lá. Porta horrível, esta. Ei, cara, olha lá, não tem ninguém no balcão. Poderei dedurar à polícia. Vamos nessa, falar com a atendente.
- Com licença, senhora – mulher estranha essa atendente. – Gostaria de fazer denúncias à polícia.
- Sobre o que, senhor?
- Sobre tráfico de entorpecentes, senhora.
- Poderia aguardar um segundo – diz. Nossa ela ficou com olhos arregalados. Deve pensar que sou um peixe grande. Dirá isso ao delegado. Espere só para ver, Balão. Voltou.
- O senhor poderia entrar?
Pronto. É agora. Está feito. Vou revelar tudo que eu sei, cara.

Ignorância
- Você é o cara que quer falar sobre tráfico?
- Sim. O senhor é o delegado?
- Sou. O que você quer falar?
- Queria denunciar a rede de tráfico da cidade.
- O senhor a conhece?
- Sim. Posso citar nomes e dizer como funciona. Apenas queria obter segurança policial, para que eu não seja ameaçado por nenhum traficante.
- Claro. Com licença, vou buscar um café. Fique à vontade.
- Obrigado – respondo. É agora, Balão. Vou revelar tudo. Estranho esse delegado, não acha? Eu conto uma história dessas e ele permanece calmo. Deve ser treinado para isso ou usou a desculpa de buscar um café para convocar colegas, para ouvir a história. Quem saiba nem acredite no que eu contarei, mas ele vai se surpreender com o que tenho a contar.
Você viu que engraçado é esse delegado, Balão? Gorducho, com um "bigodão" e cabelo pintado. Esse aí não deve conseguir participar de tiroteio por causa da barriga. Opa, ele parece estar voltando. Fica quieto.
- Qual é o seu nome, guri? – pergunta, enquanto fecha a porta da sala.
- Ricardo Reis, mais conhecido como "Flanelinha", senhor.
- Qual é sua idade?
- Vinte e dois anos.
- Você não acha que é muito novo para saber de tudo o que quer contar?
- Não, senhor. Conheço bem a rede de tráfico da cidade – engraçado, ele não trouxe o café, mas não vou falar disso agora. Nossa, como ele está sério.
- Como você sabe disso, guri?
- Bom, senhor,...eu, na verdade, trabalhei com eles, preparando buchas de cocaína.
- Sei. E você não teme que eles queiram matá-lo após contar isso a mim?
- Temo, senhor. Por isso, peço proteção para esconder-me. Vi na televisão traficantes sendo levados a outras cidades para esconderem-se enquanto prestam depoimento. Quero contar tudo e acho que sair da cidade já basta para eu estar seguro.
- Se conhece o tráfico há anos, por que procura a polícia somente agora?
- Porque antes eu não tinha coragem – digo. O delegado está ficando cada vez mais rijo, com as mãos fechadas sobre o espaldar da cadeira e a sobrancelha de taturana curvada sobre olhos negros, gélidos e brilhantes.
- Compreendo. Saiba que, se eu considerar sua denúncia, você pode ser autuado como traficante e até mesmo ser preso e condenado.
- Mas, senhor, eu vim por vontade própria contar o que sei. Poderia ficar quieto.
- Agora não adianta mais, garoto. Você vai para o xilindró, para cadeia.
- Espere aí, delegado. Se eu for à cadeia poderei ser morto. Têm muitos que estão presos e podem querer me matar. Eu posso ser morto, senhor.
- Desculpe-me, mas é isso que tenho a fazer. Para não dizer que eu não sou bom, dou-lhe uma única chance: você pode sair daqui sem dizer nada e eu não o incrimino.
- Espere aí, delegado, mas eu queria contar, eu preciso.
- Não enche o saco, guri. Sai daqui. Eu estou te dando uma chance. Não volte mais e, se abrir a boca sobre o que sabe ou sobre o que ouviu aqui, eu mando meus homens te matarem ali na esquina. Sai. Sai fora, meu – exalta-se.
- Mas...
- Sai.
Tenho medo e dor. O meu corpo dói, minha cabeça sente o repé e a ressaca. O meu peito está dolorido Será o coração? Não pode ser. O coração não dói. Quando é o coração, a dor é no braço esquerdo. Eu sei disso. Melhor eu sair daqui, dessa delegacia. O delegado quer me empurrar para fora da delegacia. Ele não quer me ouvir. Preciso me levantar dessa cadeira, mas parece ser muito difícil fazer isso, sinto-me pregado à cadeira.
- Sai fora daqui, guri. Deixa que eu te levo embora...
Pegou-me pelo braço. Onde ele me levará? Eu não poderia deixá-lo fazer isso. Mas meu corpo dói. Preciso de pó, senão não agüentarei a dor. Esse cara deve ser ligado ao tráfico e tem cara de viciado. O meu corpo dói. Preciso de pó, bastante pó. Onde ele me leva? Ele aperta meu braço e não pára de falar.
- Sai fora daqui, cara – sussurro.
Estou atrás da delegacia. Melhor eu fugir daqui. Esse delegado não pára de falar.
- Nestor. Leve esse aqui até a esquina.
- O que houve chefe?
- Errou de endereço. Pensou que estivéssemos interessados em saber fazer pão.
- Sei, chefe.
Pegou-me pelo braço. Parece um orangotango ruivo, esse cara.
- Ei, meu, o que você vai fazer? Deixe-me.
- Cala a boca, que eu vou te levar para fora da delegacia e, se voltar, recebe porrada.
- Pare, pare. Eu vou sozinho. Largue meu braço.
- Então vá, mas não volte, senão nós nos acertamos com você e teus amigos ajudam.
Soltou-me. Preciso sair daqui. Necessito beber algo para me acalmar. Cachaça. Eu preciso disso, senão morro antes do tempo. Droga. Detesto "repé" de cocaína. Parece que meu corpo irá se desfazer. Quando dinheiro eu tenho? Um real, isso dá para um litro de cachaça na venda ou dois martelinhos no bar. Legal, vou a um mercado comprar cachaça. Tenho que me embebedar rápido, senão não suportarei esse repé.

Perdas
- Flanelinha, Flanelinha. Acorda, cara.
- Quê?
- Sou eu, o Besunto. Lembra-se que eu, você e o Tapume estávamos fechando umas buchas de pó para o Jeca? Você disse que ia buscar cigarro e sumiu. Onde você se meteu? Faz tempo que está aqui, nesta casa abandonada?
Minha cabeça dói. Parece que meu estômago sairá pela boca. Eu tomei toda essa garrafa de cachaça? O que faço estirado nessa casa abandonada, a essa hora da tarde. Devo ter bebido aqui e dormi em seguida.
- Fale-me algo, Flanela. Você está mal. Tomou tudo dessa garrafa de cachaça?
- Tomei e cala a boca, Besunto. Estou mal.
- Ih, vai engrossar, cara? Não sou tua mãe para ver bêbado acordar de mau humor.
- Desculpe-me, Besunto, mas estou mal, pior que cachorro.
- Aparenta, mesmo. Você está igual a cão sarnento que achou um buraco qualquer para dormir e acorda ensopado pela chuva. Pelo jeito, está com uma ressaca terrível.
É verdade. Minha cabeça vai explodir. Não consigo falar. O que este idiota do Besunto está fazendo aí, com essa cara de fuinha, com olhos esbugalhados e ainda mais nessa casa, cheia de poças d’água e suja de barro?
- Se você não quiser falar nada, tudo bem – continua Besunto. - Mas vou lhe avisando que, com esse frio, você vai se resfriar se não arranjar onde morar. Ah, ia me esquecendo, o Tapume está puto contigo. Disse que não poderia sumir sem dar explicações. Você sabe como ele é. Ficou “encabritado”, com medo de que você tivesse sido pego ou fosse nos “dedurar” à polícia. É melhor você ter uma boa história para contar a ele, senão o Tapume não te deixa mais dormir no apartamento dele. Não precisa ficar assustado.
- Não estou assustado. Só tenho ressaca. Tomei muita cachaça para baixar o “repé”.
- Isso eu já vi. Recomendo-lhe levantar-se e ir até o apartamento. Eu te acompanho.
- Não preciso de macho me ensinando o caminho.
- Sinto muito, mas sou obrigado a te levar até lá. Levanta-te e vamos andando.
- Droga. Há quanto tempo eu saí do apartamento?
- Dois dias. Você sumiu dois dias. Aí o Tapume me pediu que desse umas voltas para te encontrar. Eu tinha certeza que você estaria ou no bar ou aqui, na casa abandonada.
- Me ajude a levantar.
- Tudo bem. Não sobrou nenhum baseado, para a gente fumar?
- Não tenho.
- Ah, vai mentir para mim? Sei que você sempre tem uns baseados.
- Dessa vez, não tenho.
- Legal. Faz de conta que eu acredito. Vamos embora, que o Tapume te espera.

Acerto
- Jeca, Tapume, aqui está o cara – anuncia Besunto, ao abrir a porta do apartamento, escorando-me pelo braço. Não há mais pó na sala. Devem ter acabado de fazer as buchas. Eu deveria estar aqui para ajudar. Estou acabado, o Jeca não poderia estar aqui. O Besunto não pára de me chacoalhar. – Encontrei-o jogado numa casa abandonada, com uma garrafa de cachaça vazia na mão, fedendo igual a uma puta depois de dar a noite inteira.
- Flanela – começa Jeca, com sua voz anasalada e cruzando os braços, protegendo o corpo esquelético, coberto por camisa social branca, calça bege, completada por uma gravata colorida. Conjunto que apenas ressalta o seu cômico nariz aquilino, em forma de gancho, imenso, pousado em seu rosto magérrimo. – Flanela, pode me explicar por que você sumiu justo no momento em que precisávamos mais de você? Hein. O Tapume e o Besunto ficaram sozinhos, pensando que você tinha dedurado eles para a polícia.
- Verdade, Flanela – concorda Tapume, com sua voz potente, embora submissa, na presença de Jeca, que retumba em seu ventre gordo, coberto, desta vez, por uma camisa social parecida ao do patrão. Besunto me joga na única cadeira da sala e, meu corpo, malemolente e esquálido, tem dificuldade em se assentar na cadeira. Tapume não considera isto, apenas continua a falar em frente ao patrão. – Você não podia ter cometido o erro de sair daqui antes da hora, ainda mais para beber cachaça. Há bebida aqui.
- Tem um amigo meu na polícia, Flanela, que disse que viu você por aqueles lados, ontem. – dispara Jeca. – É verdade, Flanelinha, querido – diz, erguendo a sobrancelha esquerda direita, deixando-a em forma de gancho. Jeca parece sentir um profundo nojo – sua maneira de aparentar ódio. Como uma mulher nervosa, não pára de falar: - É verdade ou não que você foi à delegacia, Flanela? – berra. Preciso reagir:
- Não. Não andei por lá, não, chefe.
- Sei. Entendo, Flanela. Deve ter sido engano. Esses policiais vivem mentido.
- Sou fiel a você, chefe – minto. Minha voz emplastou, tremelica a cada sílaba. Será que o orangotango ruivo ou o delegado falou algo? Não consigo falar mais nada. Parece que a cabeça e o estômago vão sair pela garganta. Jeca cruza os braços e continua:
- Sabe, Flanela querido, eu confio em você. Mas, antes gostaria de ouvir mais uma vez de que é mentira que você foi ao delegado contar o que sabe sobre meus negócios.
Desgraçado. Desgraçado. O delegado deve ter me dedurado. Estou fodido. Fodido.
- Fala, Flanela, camarada. Não vai dizer nada – ri-se, Jeca, expondo os dentes marrons de baseado.
- Abre a boca, desgraçado. Fala – esbraveja Tapume.
- Acho que ele não quer falar – afemina-se Jeca. - Mas não tem problema. Você é sangue do meu sangue e tenho certeza de que não falou nada para a polícia. Não é, Flanela?
Preciso vomitar. Minha cabeça gira. Será que vou morrer?
- Não quer falar nada, né Flanela. Está abatido. Creio que quer dormir. Tudo bem. Eu concedo esta magnanimidade a você. Mas antes quero uma prova de nossa amizade.
O Jeca pegou uma seringa. O que vai fazer?
- Segurem bem ele, guris – grita Jeca, enquanto faz um garrote no braço, com elástico de soro e segura a seringa vazia com a outra mão.
Não, não pode ser verdade. O Jeca tem Aids. O que ele vai fazer?
- Quê? O que você vai fazer, Jeca? – berro.
- Nada, cara. Só quero provar o quanto somos amigos – diz Jeca, segurando o garrote entre os dentes e batendo no braço, para procurar alguma veia menos maltratada. A dobra de seu braço parece um joelho inchado, recoberto por picadas, algumas das quais provocaram hematomas, causados pelo consumo de coca.
Achou. O Jeca achou a veia. Penetra a agulha. Seu corpo estremece. Será que vai demorar? O sangue sobe a seringa e Jeca puxa-a com calma. Preciso me desvencilhar do Besunto e do Tapume, mas meu corpo está tão mole que não consigo nem ao menos sentir raiva disso tudo. Eles me apertam cada vez mais forte. Desgraçados.
- Flanela, querido. Para provar nossa parceria, vou torná-lo sangue do meu sangue – diz, enquanto Tapume faz um garrote com a mão, no meu braço. Desgraçados. Eles querem me ferrar. – Jeca, pára, cara. Você tem Aids, cara. Não pode passar isso para mim. Pense, Jeca. Você vive bem, apesar do bichinho. Mas não precisa passar para os outros. Tenha piedade. Faça qualquer coisa comigo, menos isso – o desgraçado ri. Ele vai me espetar. Estou ferrado. – Alguém me ajuda. Tapume, Besunto, ajudem-me – eles não dizem nada. Não possuem a mínima coragem de desrespeitar o chefe.
- Desculpe-me, mas a outra coisa que poderia fazer com você seria matar-lhe com um tiro – diz jeca. - Porém prefiro lhe transmitir essa “coisinha” que tenho. Assim nós seremos quase iguais, hein? Quem saiba até nos encontramos em algum hospital, para fazer tratamento, né, Flanela, querido.
Ele enfiou a seringa. Ele enfiou. Não acredito, ele...ai.
- Boa, Tapume. Bela porrada, na nuca. Deixa o cara desacordado, põe no carro e leva para o lixão e o deixe viver. Esse não vai nos incomodar até morrer.

Espera
- Bom-dia. Você é o Ricardo Reis, o Flanela?
- Sou.
- Eu sou repórter de jornal. A coordenadora do Serviço de Apoio aos Portadores de Aids me disse que você seria uma pessoa legal para entrevistar, sobre viver com HIV.
- É. Sou mesmo.
- Posso lhe entrevistar?
- Claro. Faço tudo pelo serviço de apoio. Eles me ajudaram muito.
- Ótimo. Poderíamos conversar aqui mesmo, na sala?
- Pode ser. A Clara saiu, não vamos incomodá-la se ficarmos aqui.
- Bom. Deixe-me apenas organizar meus papéis para fazer a entrevista.
- Claro. Com licença, vou buscar uns cafés. Aceita?
- Sim.
- Então, com licença – digo. Essa será a primeira vez em que me entrevistam. Antes podia ser pior. Quem saiba ele me entrevistasse em uma prisão ou nem estaria vivo para isso. Melhor nem pensar. Tenho que aproveitar essa oportunidade para contar o que passei. Sim. Eu preciso fazer isso. Talvez publique. Onde está a porcaria do café? Como é engraçado esse repórter, com esses óculos e cabelinho lambido “mamãe vou à escola”.
Daqui a pouco a Clarinha chega do trabalho. Sem ela, não sei o que seria de mim. Se eu não fosse soropositivo, eu a namorava, verdade. Acho que ela sabe disso. Um dia vou ter coragem para me declarar para ela, vou mesmo.
A água está chiando. Melhor preparar os cafés rápido e começar a entrevista.
- Aqui estão os cafés...Prefere açúcar ou adoçante?
- Nenhum dos dois.
- Qual é mesmo seu nome?
- Gerson. Gerson Correa. Poderia me contar como adquiriu a doença?
- Bom. Faz cinco anos. Eu usava drogas. Fumava, cheirava, bebia,...Sabe como é? Vivia com minha mãe, mas, por causa das minhas loucuras, ela me expulsou de casa e eu fui viver com uns camaradas, viciados e traficantes. Passei a ajudá-los no tráfico de drogas. Misturava pó bom com pó de giz, cal e outras coisas e depois fazia buchas. Era trabalho bom, na época, porque podíamos cheirar o que quiséssemos, sem dar satisfação a ninguém. Imagine aqueles tijolos de pó do tamanho de Bíblias ilustradas.
- Sei.
- Pois uma das vezes que ficamos, eu e mais dois camaradas, fazendo buchas por três dias e noites, enlouqueci com aquela vida e decidi contar à polícia quem traficava na cidade e parar de usar drogas. Fui a brigada militar. O cara que me atendeu disse que esse assunto era com a polícia civil. Fui a polícia civil. O delegado me expulsou de lá e ameaçou me prender se eu quisesse dedurar alguém. Aí me jogaram para fora da delegacia. O meu ex-chefe de tráfico, que tem AIDS, ficou sabendo que eu fui a delegacia e, auxiliado pelos mesmos que faziam buchas comigo, injetou sangue contaminado no meu braço. Depois, largaram do meu pé e me impediram de me aproximar deles.
- Nossa.
- Pois é. Foi isso. Sabe, eu acho que a polícia não presta. Nem todos são ruins, mas muitos são os maiores comparsas dos traficantes. Queria saber se você poderia contar esta história no jornal?
- Gostaria, mas nossa empresa tem boas relações com a polícia, pois são eles que decidem para quem telefonar no momento em que possuem alguma notícia. Seria difícil publicar esta notícia sem alguma represália de algum funcionário da polícia, mas tentarei.
- Até a imprensa colabora com os traficantes?
- Não. Mas, pelo motivo que lhe falei e, também, para evitar processos, o jornal evita divulgar certas notícias. Esses tempos a empresa já teve que pagar uma bagatela por causa de notícias divulgadas e contestadas pelos denunciados – diz com nervosismo.
- Que porcaria.
- Pois é. Mas deixa eu esclarecer algumas dúvidas. Você se livrou das drogas?
- Não há problema. Assim que o meu ex-chefe me injetou sangue contaminado, expulsou-me do narcotráfico. Não ordenou me matar por que espera que eu morresse só. Também não temia que eu o dedurasse, porque, na época, não tinha polícia federal na cidade e parte da polícia civil servia ao narcotráfico. Morei nas ruas algumas semanas, até minha mãe me aceitar de volta, em casa, sob a condição que parasse de usar drogas. Conheci um pessoal que tem uma dessas fazendas que recuperam drogados e fiquei por lá dois anos, trabalhando na lavoura para pagar minha estadia e me livrar das drogas. Foi difícil. Tive recaídas, mas consegui parar. O coordenador da fazenda era ex-traficante, já foi até preso, e me ajudou a não mais querer as drogas.
- Depois disso, nunca mais usou drogas.
- Usei, várias vezes. Voltei a fazenda mais duas vezes, nos últimos anos. Mas creio que agora eu esteja bem melhor. Só tenho a agradecer pelo pó misturado que eu cheirava, que se tornava pior ainda quando misturávamos, mais uma vez, antes de revender. Se fosse puro, seria mais difícil me livrar do vício. Há muitos que foram meus colegas na fazenda, que ainda não se recuperaram, pois usavam droga mais pura.
- Compreendo. Você voltaria a usar drogas?
- Essa pergunta está com jeito de quem quer uma frase comovente para fazer alguém parar de usar drogas ou não usar, igual as entrevista de televisão. É isso?
- É – ri.
- E como está vivendo depois das drogas?
- Bem. É ruim não ter emprego e depender dos outros. Quero encontrar algum trabalho e ajudar no sustento da casa.
- Você mora com a mãe?
- Não. Este é o apartamento de Clara, minha amiga. Melhor contar a história de onde eu parei: depois de cada período de internação, voltava para casa de minha mãe, mas não me entendia mais com ela. Éramos incompatíveis. Passei a freqüentar o grupo de combate às drogas, que você foi visitar, antes de me conhecer. Nele, tornei-me amigo da Clara e comecei a me tratar com um psicólogo. Eu tinha muitos problemas em casa. Minha mãe me tratava como criança malcriada. Quando brigava com ela, eu saía de casa. Primeiro, bebia e acabava fumando algo e era internado de novo. Depois que aumentou minha amizade com Clara, ia até ao apartamento dela, quando brigava com minha mãe. Em poucas semanas, ela me propôs morar com ela, apenas como amigos. Aqui estou. Mas ainda procurando emprego, para ajudar nas despesas da casa. A pensão que recebo do governo mal dão para pagar os remédios e ajudar na alimentação.
- Sei como é. Mas, não se preocupe, quem saiba logo você consiga o emprego. Creio que o que eu queria saber era isso. Tenho uma última pergunta, aquela brega. Qual é a mensagem que você deixaria para os que usam e os que pensam em utilizar drogas?
- Melhor não falar para os usuários, e sim para os governantes. A única coisa que posso dizer é que, em certos casos, não adianta o governo apenas dizer ser um erro usar drogas, deve dar estudo e oportunidades de trabalho e cultura, para evitar o uso. Não adianta este governo idiota apenas fazer campanhas publicitárias contra drogas. Precisa, também, dar dinheiro para educar melhor o povo, melhorar a qualidade dos professores, acabar com a corrupção policial, dar mais oportunidades de trabalho, auxiliar o crescimento e surgimento de empresas e parar com o falatório medíocre que não serve para nada, além de parar de tratar temas cruciais como se fosse campanha eleitoral, com um governante, deputado, senador ou sei lá o que querendo aparecer mais do que os outros. São todos uns idiotas de gravata que não vêem ser eles mesmos o mal do país, enquanto continuam a querer levar vantagem em tudo, viver pela vaidade e a lamber o rabo do FMI e de qualquer outro estrangeiro que pise este país.
- Valeu. Vou escrever isto.

Reflexões
A morte; eu não sei quando ela vem. Tenho apenas 27 anos e já faz cinco que eu tenho AIDS e até agora nenhum sintoma da doença. Mas sinto a morte perto. É engraçado ter AIDS, hoje. Quem me olha nem sequer desconfia que eu tenho o “bichinho”. Entretanto, quando vou dormir, parece que nunca mais vou acordar. Igual ao Cazuza. Comeu um xis-salada, tomou um copo de refrigerante, dormiu e morreu.
Essa deve ser a melhor morte, sem dor. Conheço várias histórias de morte desse tipo, de pessoas que até mesmo não tiveram AIDS, como eu, mas sofreram boas mortes. Minha mãe conta a de um tio que também se foi enquanto dormia. Sua esposa acordou, pela manhã, chacoalhou-o. Ele não se mexeu e ela foi preparar o café. Mais tarde a mulher reparou que sue esposo havia falecido.
A morte da minha avó foi dolorosa. Ela permaneceu quase 30 dias no hospital. Sofreu, com câncer de fígado. As dores eram insuportáveis, dizem aqueles que a viram. Na época eu era muito pequeno para acompanha-la enquanto estivesse doente. Nos últimos dias, sua saúde pareceu melhorar.
Na última noite, dormiu sem sofrimentos. Pela manhã, às 7h30min, pegou na mão de minha mãe, olhou para ela e disse “pai, estou indo”, fechou os olhos e, calmamente, morreu, aos 72 anos de idade. Fazia 20 anos que seu ex-marido havia falecido da mesma maneira, no mesmo horário e no mesmo dia da semana: domingo.
Quem saiba eu esteja sendo pessimista e, ao final, morra de velhice, como esses meus parentes. A ciência é imprevisível. Mantenho minhas esperanças. Todavia, quando acordo pela madrugada, parece que esta esperança não existe ou que ela me acompanha apenas como uma ilusão antes da morte. E, de dia, mantenho a esperança de viver, morrendo de velhice, lá pelos 80 anos, cercado de netos, igual as propagandas de televisão.
O pior é o desemprego. Estou aposentado, por ser aidético, mas há anos não consigo trabalho. Fico no apartamento de Clara, sem fazer nada. Assisto televisão. De vez em quando, leio uns livros. O meu único convívio social é no Serviço de Apoio aos Portadores de AIDS. Antes, vivia em uma fazenda para me recuperar das drogas.
Passo o dia pensando no que fazer e assistindo televisão. Às vezes, me aventuro a caminhar pela cidade, sem rumo. Fiquei medroso por causa do Jeca e da turma. Pensei que, se aparecesse demais nas ruas, ele poderia querer me matar. Fiquei sabendo, esses dias, que a polícia federal estava para pegá-lo. Espero que seja verdade. O delegado que me ferrou foi transferido para outra delegacia faz anos. Esperei que ele fosse incriminado na CPI do Narcotráfico, que aconteceu uns tempos atrás. Porém ele não foi. Desgraçados.
Mesmo com estes problemas, gosto de viver. O melhor é acordar da vida é acordar numa manhã morna qualquer, abrir a janela, ver o sol e o céu azul. Sentir o calor das primeiras horas do dia e o cheiro das flores no canteiro da janela do quarto. Aí, nesse momento, sinto-me vivo e cantarolo aquela música do Legião:

Quando o sol, bater
Na janela, do teu quarto
Lembra e vê,
Que o caminho é um sol.

As vezes só a música mesmo para nos consolar da ilusão da vida.